Marsílio de Pádua

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Marsílio de Pádua

Por Marcos Granconato

INTRODUÇÃO:

Três foram os períodos ao longo do século 14 marcados por intensa produção literária de natureza antipapal. O primeiro teve como centro o ano de 1302 e foi marcado pela disputa entre Filipe o Belo e Bonifácio VIII. O segundo iniciou- se no pontificado de João XXII e estendeu-se até cerca de 1340. O terceiro foi durante o cisma papal que marcou o fim daquele século. Este trabalho trata da vida e obra de um dos autores do segundo período. Marsílio de Pádua viveu na primeira metade do século 14 e ganhou destaque graças à produção de seu tratado político, o Defensor Pacis.

Esta monografia, além de abordar a vida de Marsílio, bem como o contexto histórico dentro do qual viveu, apresentará também uma breve síntese de suas idéias, todas elas consubstanciadas em sua obra maior, o aludido Defensor Pacis.1 Dessa obra, algumas citações foram feitas no afã de estabelecer um breve contato entre o leitor e o personagem objeto deste estudo.

Também ao longo da monografia, mais especificamente no item 4, Marsílio de Pádua é analisado sob a óptica de dois grandes historiadores modernos: Philip Schaff e Earle E. Cairns. A avaliação desses estudiosos de destaque lança luz sobre a importância de Marsílio para a história da igreja nos séculos que sucederam aquele em que o paduano viveu. Além disso, os dois escritores são unânimes em reconhecer a contribuição prévia do grande pensador para a Reforma Protestante que eclodiu quase duzentos anos depois de sua morte.

Finalmente, concluindo o trabalho e em meio a uma breve síntese do seu conteúdo, algumas reflexões são apresentadas relativas à importância da postura e das idéias de Marsílio de Pádua como modelo para os homens da igreja contemporânea.

A pesquisa foi realizada a partir de fontes secundárias e primárias e sua relevância é inegável à medida que questões voltadas para os limites de competência nas relações entre igreja e Estado vez por outra vêm à tona, até mesmo nas páginas dos nossos jornais. Conseqüentemente, Marsílio é uma voz destinada à perene atualidade. Seus conceitos serão sempre úteis para a formação de convicções que se fundamentem sobre sólidas bases escriturísticas, históricas e lógicas.

1. MARSÍLIO DE PÁDUA E SEU TEMPO:
Marsílio Mainardino nasceu em Pádua por volta de 1270. Ele se dedicou ao estudo da medicina e, por um breve período, em 1312, foi reitor da Universidade de Paris. Em 1324, concluiu, com a ajuda de João de Jandum (1275-1328), o Defensor Pacis, uma obra que encerrava severas críticas contra o sistema eclesiástico que prevalecia em sua época e delineava os princípios que deveriam reger uma nova ordem. No Defensor Pacis encontram-se as mais importantes e notáveis reflexões sobre a reforma conciliar, cujas tentativas de implementação só tomaram impulso a partir de 1409.

Por razões não totalmente claras, em 1325 ou 1326, Marsílio de Pádua passou a fazer parte da corte de Luiz, o Bávaro atuando como médico do imperador. Ele acompanhou, portanto, muito de perto a disputa entre Luiz e o papa João XXII (1316-1334) acerca dos limites do poder nas relações entre igreja e Estado, demonstrando profunda simpatia pela causa do imperador, ao ponto de João XXII ordenar sua prisão e, numa bula datada de outubro de 1327, chamá-lo de filho da perdição, filho de Belial, indivíduo pestilento e besta do abismo.

Sendo também um clérigo, Marsílio foi nomeado vigário de Roma pelo imperador e manteve-se fiel aos seus princípios mesmo quando Luiz, o Bávaro foi forçado a se retratar diante do papa Clemente VI, em 1343, ano em que o paduano morreu.

Marsílio pertence a uma época em que tanto o papado como o Sacro Império Romano tinham deixado para trás o período dourado do ápice do seu poder. Se a partir da segunda metade do século 12 até meados do século 13 o papado, sob homens como Inocêncio III (1198-1216), alcançou o ponto alto de seu poder na Europa Ocidental; se, também por esse tempo, o Sacro Império Romano atingiu o seu clímax graças, inclusive, ao despertar da erudição acompanhado do estudo das leis, o fato é que ao fim do século XIII, os dois maiores poderes ocidentais apresentavam sinais de um declínio do qual ambos, à luz da história posterior, jamais se recuperariam plenamente.

Na luta pelo poder absoluto ocorrida naquele período em que tanto o papado como o império tiveram o seu apogeu, ambos foram fortalecidos por influências que se faziam sentir ainda nos dias de Marsílio de Pádua. Em prol do papado, o ocidente havia passado por um despertamento religioso manifesto especialmente no surgimento de novas ordens monásticas (e.g. os franciscanos e os dominicanos) e no florescimento do escolasticismo. É bom, contudo, ressaltar que o aparecimento da teologia escolástica foi apenas uma das várias expressões de um despertar da erudição que naquele período, como já dito, revigorou também o poder imperial.

De fato, esse despertar da erudição intensificou o estudo tanto da lei canônica como da lei civil. A primeira teve como seu mais importante objeto de análise o Decretum de Graciano, uma compilação datada da metade do século 12, acompanhada de comentários fortemente favoráveis à autoridade papal por parte do autor. Em Bolonha, o principal centro de estudo das leis, por longo tempo essa obra foi considerada proeminente entre os eruditos.

O estudo da lei civil, por sua vez, com o debruçar-se dos intelectuais sobre a lei romana, especialmente sobre as compilações feitas por Justiniano, o grande imperador bizantino do século 6, conduziu à exaltação do poder secular. No começo do século 12, o Código de Justiniano tinha sido introduzido em Bolonha e se espalhado para outros centros. Como se sabe, o imperador Justiniano (527-565) tinha exercido a seu tempo plena autoridade sobre os assuntos da igreja. Nele, o chamado “cesaropapismo” teve sua mais alta expressão, de modo que era natural que seu código encerrasse o ideal do imperador como monarca absoluto. Assim, os defensores da primazia da lei civil afirmavam que o imperador tinha autoridade mesmo nas questões de natureza estritamente eclesiásticas.

O estudo das leis, portanto, favoreceu tanto o fortalecimento do poder papal como revigorou o poder imperial, contribuindo para a formação de uma atmosfera intelectual cujo clima perdurou até os dias de Marsílio, fornecendo assim os elementos com os quais teve de lidar ao construir seus princípios e conclusões.

A reflexão acerca da disputa pelo poder absoluto entre igreja e Estado foi também impulsionada desde antes dos dias de Marsílio pela luta crônica entre dois partidos que dividiam a Itália e eram proeminentes na política daquele país: os guelfos e os guibelinos. Os primeiros defendiam a independência da igreja e das cidades italianas. Os guibelinos, por sua vez, sustentavam que a autoridade do imperador deveria ser mantida sob todos os aspectos. Nas palavras de K.S. Latourette, Marsílio de Pádua “era um ardoroso guibelino”. 3

Para uma compreensão ainda mais clara, porém, acerca do pano de fundo sobre o qual Marsílio de Pádua viveu e trabalhou é imprescindível conhecer com mais detalhes a já aludida disputa entre o papa João XXII e o imperador Luiz, o Bávaro.

João XXII (Tiago de Cahors) foi um dos papas do período conhecido como “Cativeiro Babilônico do Papado”, que perdurou de 1309 a 1377. Em 1313, três anos antes do início do seu pontificado, morreu o imperador Henrique VII, abrindo a disputa pelo trono entre Luiz, o Bávaro e Frederico de Habsburgo. Assim, quando João XXII subiu ao trono pontifício, ambos os pretendentes à coroa imperial apelaram ao novo papa, esperando o reconhecimento de sua parte.

Por outro lado, como tivera cinco dos sete votos dos eleitores, Luiz, o Bávaro fez-se coroar pelo arcebispo de Mainz, independentemente de qualquer aprovação papal. Estava pronto o palco para um conflito que iria perdurar até mesmo depois da morte de João XXII, em 1334.

Após a coroação de Luiz, o papa declarou que era o vigário do império enquanto o trono estivesse vago e afirmou não reconhecer a eleição de Luiz, o Bávaro, uma vez que esta não havia sido submetida à aprovação papal. Nesse ponto, percebe-se que todo o conflito deveria girar em torno dos limites de autoridade que os dois poderes, o eclesiástico e o secular, deveriam impor um ao outro.

De um lado o papa alegou ter autoridade para aprovar ou até mesmo anular uma eleição imperial. De outro, o imperador viu o império como independente da igreja e, atacando severamente seu inimigo, apelou para um concílio geral, alegando que João XXII era culpado de heresia e que tal concílio deveria promover sua deposição.

Mesmo enfraquecido pelas lutas contra Leopoldo da Áustria e Carlos IV da França pelo trono alemão, Luiz, o Bávaro não abriu mão de seus direitos imperiais, nem de sua autoridade sobre a Itália para onde marchou em janeiro de 1327 e, refletindo as idéias de Marsílio de Pádua, foi coroado imperador por um representante do povo chamado Sciarra Colonna, obviamente sem o consentimento papal. Philip Schaff destaca que “Luiz foi o primeiro imperador medieval coroado pelo povo”. 5

Depois disso, estabeleceu-se um tribunal em que João XXII foi deposto e João de Corbara, sob o nome de Nicolau V, subiu ao trono pontifício como antipapa. Mais uma vez refletindo as idéias de Marsílio, o próprio imperador pôs a coroa sobre a cabeça do pontífice.

A disputa entre a igreja e o império prosseguiu ultrapassando o período de pontificado de João XXII, estendendo-se por todo o reinado do papa Bento XII (1334-1342) e só chegando ao fim nos dias de Clemente VI (1342-1352), com a derrota de Luiz, o Bávaro.

Vê-se, portanto, como já dito, que o caloroso debate acerca dos limites de poder nas relações igreja-Estado não perdeu o vigor com o término da idade áurea dos dois poderes. Como a luta entre o papa e o imperador não cessou com o fim dos seus dias de apogeu e como a autoridade dos imperadores se desvaneceu de modo mais nítido do que a dos pontífices romanos, grandes tratados surgiram no início do século 14 em defesa da autoridade secular tornando ainda mais ardente a discussão sobre tão cativante assunto. Schaff descreve bem esse quadro:

Ao pontificado de João XXII pertence um segundo grupo de ataques literários ao papado. Passando por Dante e João de Paris, eles atacaram a função espiritual do papa. Suas investidas tomaram força em virtude do conflito com Luiz da Bavária e a controvérsia com os franciscanos espirituais. A corte de Luiz tornou-se um verdadeiro ninho de agitação antipapal e o quartel general de escritos políticos. 6

É entre os escritores dessas obras que, ao lado de pensadores como Guilherme de Occam e Miguel de Cesena, encontramos a figura de Marsílio de Pádua. Com o seu Defensor Pacis, obra radical e devastadora, ele se insurgiu contra as reivindicações de supremacia do papado tanto sobre o Estado como sobre a igreja e, como será visto, rejeitou terminantemente o ideal romano de um império cristão universal.

3. O PENSAMENTO DE MARSÍLIO DE PÁDUA: ELEMENTOS PRINCIPAIS
O Defensor Pacis foi escrito em 1324, sendo concluído em apenas dois meses com a ajuda de João de Jandum. A obra foi dedicada ao imperador. Basicamente tratava-se de um manifesto contra as reivindicações espirituais e temporais do papado, bem como contra a organização hierárquica da igreja. Seu título foi escolhido com o intuito de sugerir que a paz no mundo cristão seria impossível enquanto a ordem então dominante estivesse em vigor. Nessa obra estão consubstanciados os elementos distintivos do pensamento de Marsílio a seguir expostos.

3.1 O POVO COMO FONTE DE PODER
Marsílio de Pádua sustentava radicalmente que o poder tanto eclesiástico como estatal são baseados na soberania do povo. Especificamente sobre o governo civil, ele escreveu acertadamente:

Afirmamos, pois, de acordo com a verdade e a opinião de Aristóteles manifesta no livro III da Política, capítulo 3.º, que o legislador ou a causa eficiente primeira e específica da lei é o povo ou o conjunto dos cidadãos ou sua parte preponderante, por meio de sua escolha ou vontade externada verbalmente no seio de sua assembléia geral, prescrevendo ou determinando que algo deve ser feito ou não, quanto aos atos civis, sob pena de castigo ou punição temporal. 7

O povo é, portanto, a fonte de toda autoridade e confere o poder de exercê-la a quem achar por bem escolher. Isso, quando aplicado à igreja, significava, entre outras coisas, que nenhum bispo ou sacerdote tinha autoridade para suprimir a liberdade individual sem o consentimento do povo ou de seu representante que é o poder civil.

O Defensor Pacis derrubava, assim, a idéia de uma hierarquia absoluta tanto na igreja como no Estado. Para Marsílio, o povo no Estado e os cristãos na igreja detinham a plena soberania e era a partir deles que, por meio de corpos representativos, o imperador e o papa deveriam ser eleitos e, se necessário, depostos. Foi dessa forma que o livro antecipou temas da Reforma Protestante e da democracia ocidental.

3.2 A CONVOCAÇÃO DE CONCÍLIOS GERAIS
Para obter a ação unida na Igreja, o Defensor Pacis advogava a convocação de concílios gerais compostos de sacerdotes e leigos eleitos pelo voto das assembléias de cada um dos Estados, assembléias essas que deveriam ser compostas por cidadãos adultos do sexo masculino. Os leigos e clérigos deveriam ter a mesma posição no concílio.

O chamado “conciliarismo” seria a concretização da teoria de que a suprema autoridade da igreja deve advir do povo cristão. O concílio dessa forma estabelecido e investido de ampla autoridade agiria em prol do corpo inteiro de cristãos. Marsílio explicou com detalhes como esse concílio deveria se estabelecer e funcionar:

Assim, todas as províncias ou comunidades relevantes do mundo, de acordo com a determinação de seu legislador humano, não importa se for um ou muitos, e conforme sua proporção em quantidade e qualidade de pessoas, devem escolher fiéis, primeiramente entre o clero e depois entre os leigos idôneos… os quais na condição de juízes, de conformidade com a primeira acepção do termo, por força da mencionada autoridade que lhes foi confiada pela totalidade dos cristãos, a se reunir (sic!) num determinado lugar do mundo, o mais adequado segundo a decisão da maioria deles.

Nesse local eles esclarecerão e definirão tudo o que lhes parecer ambíguo, útil ou necessário no tocante à Lei Divina e ainda no que concerne à liturgia, tendo em vista promover a paz e a tranqüilidade dos fiéis.

Tal mister absolutamente não é da alçada de nenhuma outra pessoa particular e tampouco de um grupo social específico. 8

Versando ainda sobre esse modelo infinitamente melhor do que aquele adotado hoje pela Igreja Católica, Marsílio esclarece que, ainda que fossem os supremos representantes do povo cristão, os concílios gerais seriam passíveis de erro. Avanços como esses são contrabalançados, porém, pela afirmação que os concílios e somente eles teriam o direito de canonizar santos. 9

3.3 A REJEIÇÃO DAS REIVINDICAÇÕES GERAIS DO PAPA
À luz do que foi dito até aqui, é evidente que Marsílio de Pádua atacava as reivindicações de supremacia do papado no Estado e na igreja. De fato, a conseqüência lógica da afirmação de que o povo é fonte de autoridade, a qual se expressa por meio de corpos representativos, é a rejeição do poder absoluto do papa sobre a igreja, bem como de sua alegação de suserania sobre o Sacro Império Romano.

Marsílio, porém, ia além. Ele atacava a própria idéia de hierarquia dentro da igreja, afirmando que não passava de invenção humana. Segundo ele, o Novo Testamento mostra que na Igreja Primitiva bispos e sacerdotes eram originalmente iguais, não havendo nenhuma hierarquia entre eles, e que todos os bispos eram sucessores dos apóstolos.

Aliás, nem mesmo entre os apóstolos havia existido qualquer hierarquia. Mesmo Pedro jamais teve qualquer superioridade entre eles. Além disso, Pedro foi bispo de Antioquia, não fundador do episcopado romano. De fato, nem mesmo sua presença em Roma é comprovada.

Tudo isso implicava obviamente o fato de que o papado era uma simples convenção humana e, direta ou indiretamente, atingia uma série de outras prerrogativas que o papa arrogava para si. Por exemplo, segundo o Defensor Pacis, a função de ligar e desligar (Mt 16.19) não é judicial, mas sim declarativa; o papa (e outros bispos quaisquer) não tem poder para perdoar, sendo somente Deus o detentor desse poder; o poder para aplicar punições é inerente à congregação conforme o ensino de Cristo em Mateus 18; a obediência aos decretos papais não é condição para a salvação; as escrituras são a fonte última de autoridade e, no caso de conflitos de interpretação, é o concílio geral que estabelecerá o que o autor sagrado de fato diz; e a lei canônica está eivada de inúmeros erros. 10 Não é, pois, de se estranhar que o papa tenha condenado o livro.

3.4 A SUJEIÇÃO DA IGREJA AO PODER TEMPORAL
O Defensor Pacis sustentava que visto que Cristo não reivindicou poder temporal, mas submeteu-se a si mesmo e sua propriedade ao Estado e visto que, de acordo com seus mandamentos, os apóstolos fizeram o mesmo, a igreja deve seguir esse exemplo. O livro ensinava que o caminho do clero deve ser o da pobreza absoluta, e que a Igreja e seus ministros não devem ter nenhuma autoridade temporal, mas se dedicar ao ensino e às questões de ordem espiritual.

Mesmo os casos de heresias, ainda que sejam detectadas pelo sacerdote, a punição pertence à autoridade civil que a aplicará dependendo da sua ofensa à sociedade, já que de acordo com o ensino da Escritura ninguém pode ser coagido pela força a obedecer a lei de Deus.

Marsílio, em seu tratado político, argumenta que o Estado, sendo a mais abrangente comunidade humana, é superior à igreja, sendo certo que, em todos os assuntos de natureza civil, os clérigos devem responder ao poder temporal como qualquer outro homem.

Assim, a alegação de que o papa tem jurisdição sobre príncipes e nações é falsa e vai contra a própria natureza da igreja, sendo o simples fruto das guerras nacionais ocorridas especialmente na Itália. Na verdade, o que ocorre é que, para que seu pontificado seja válido, é necessário que o papa seja reconhecido pelo imperador, o qual poderá, posteriormente, inclusive, depô-lo. A prova disso encontra-se no julgamento de Pilatos, ao qual o próprio Cristo de submeteu. 11

Marsílio vai além e, de modo ousado ensina que o Estado pode até mesmo, se julgar necessário, limitar o número de clérigos. 12

3.5 A PLURALIDADE DE ESTADOS
Finalmente, vale destacar a visão de Marsílio quanto ao sonho papal acalentado desde os dias de Hildebrando, de criar um império cristão sob um só pastor. O autor do Defensor Pacis não se curvava diante da idéia de um império cristão universal. Ele sustentava que deve haver muitos Estados, cada um baseado em leis inerentes à natureza, e que a igreja não deveria ter jurisdição sobre eles.

A lei para os diversos Estados deveria ser promulgada pelas assembléias de todos os cidadãos adultos do sexo masculino. O executivo, que poderia ser um homem ou um concílio, deveria ser eleito pela assembléia e teria autoridade sobre todos os outros membros do executivo, bem como sobre os representantes do judiciário.

4. AS TEORIAS DE MARSILIO DE PÁDUA: UMA AVALIAÇÃO
Não seria exagero afirmar que as idéias de Marsílio de Pádua são mais do que um prelúdio tanto da Reforma Protestante como, mais além, da própria Revolução Francesa. São mais do que um prelúdio dos temas da Reforma porque alguns deles, principalmente os que dizem respeito à teoria do poder, encontram-se já desenvolvidos em Marsílio. Há assim um sentido muito real em que podemos afirmar que Marsílio de Pádua foi um dos precursores do movimento reformador do século 16.

Essa contribuição de Marsílio para o desenvolvimento do pensamento teológico é ressaltada de modo vivo por dois historiadores modernos de destaque: Philip Schaff e Earle Cairns. O primeiro afirma com propriedade:

Se observarmos sua doutrina acerca da supremacia do Estado sobre a Igreja, veremos que a visão de Pádua relaciona-se intimamente com aquela encontrada na cristandade protestante atual. Cristo, ele disse, privou seus apóstolos, discípulos, bispos ou presbíteros de todo domínio terreno, tanto por seu exemplo como por suas palavras. Os princípios contidos no Defensor são a autoridade final das Escrituras, a igualdade no sacerdócio e sua obrigação diante da lei civil, a origem humana do papado, a natureza exclusivamente espiritual das funções sacerdotais e o povo cristão no Estado ou na Igreja como a última fonte de autoridade sobre a terra. 13

O ilustre historiador prossegue dizendo que Marsílio é considerado por muitos não só o precursor de Lutero e Calvino, mas também o gênio da revolução moderna. Schaff não concorda plenamente com essa avaliação, pois, segundo o seu entender, o programa de Marsílio não abrangia um esquema de reforma, sendo antes “uma proclamação da mudança completa que o século 16 testemunhou”. 14

Philip Schaff também avalia Marsílio de Pádua a partir de uma comparação com Tomás de Aquino:

O espaço que separou Pádua e Tomás de Aquino foi de apenas cinqüenta anos. Mas a diferença entre a crítica mordaz e inquiridora de um e a argumentação lenta e metódica do outro é tão ampla quanto a distância entre o Leste e o Oeste, dada a forma direta de um modo de pensar moderno em contraste com o método pesado do escolasticismo medieval. Nunca ocorreu a Tomás de Aquino pensar fora dos claustros estreitos da interpretação da Escritura construídos por outros eruditos e papas medievais. Ele apoiou o regime que já encontrou pronto. Continuou usando as velhas e distorcidas interpretações da Escritura e não produziu nenhuma idéia nova sobre o governo. Marsílio, independentemente do despotismo do dogma eclesiástico, voltou-se para os livres e flexíveis princípios de governo da Igreja Apostólica. Ele quebrou as formas nas quais o pensamento eclesiástico de séculos tinha sido moldado, e afastou-se de Agostinho ao reclamar em prol dos hereges um tratamento racional e humanitário. 15

Tamanha é a admiração de Schaff pela pessoa e obra de Marsílio que chega ao ponto de manifestar a esperança de que um dia os italianos reconheçam no autor do Defensor Pacis o arauto de uma ordem muito superior àquela por eles adotada e abandonem a teoria sacerdotal do ministério cristão considerando-a simples invenção humana. 16 Independentemente, porém, da realização dessa elevada expectativa, Schaff, observando as declarações feitas no Concílio de Constança (1414-1418), décadas depois da morte de Marsílio, aponta para o fato de que sua voz não se levantou em vão. 17

Earle Cairns também apresenta sua avaliação da obra de Marsílio de Pádua. Inicialmente, ele fala em termos do que teria acontecido se as idéias expostas no Defensor Pacis tivessem sido adotadas:

Se as idéias de Marsílio tivessem triunfado, a igreja católica romana teria sido transformada numa monarquia constitucional dirigida por um papa escolhido por um concílio, desaparecendo assim o papado absoluto da igreja medieval. Isso não ocorreu, muito embora os concílios tivessem aumentado a sua importância em outros setores. 18

Cairns ensina que o período abrangente dos concílios reformadores (1409-1449) foi marcado pela implementação de um modelo de administração muito próximo do idealizado por Marsílio. Porém, os fracassos dos concílios de Basiléia e Ferrara-Forença em estabelecer na igreja uma monarquia constitucional parecida com aquela proposta por Pádua tornaram inevitável a Reforma Protestante. 19

Cairns, portanto, vê em Marsílio alguém cujas idéias, se concretizadas na Igreja, teriam impedido o rompimento que abalou toda a Europa Ocidental no século 16, uma opinião que parece ser pacífica entre os autores protestantes.

CONCLUSÃO:
Pierre Pierrard, escritor católico, classificou o Defensor Pacis como a perfeita expressão de um “averroísmo político”, ou seja, um livro que aplica o pensamento de Averroes acerca do conflito entre duas verdades, a racional e a dogmática, à política. 20 Contudo, como se depreende desta monografia, a avaliação de Pierrard é por demais simplista e até mesmo não corresponde aos fatos.

Marsílio de Pádua não contrapôs verdades racionais a dogmas. O que ele fez foi, por meio das Escrituras e do indispensável raciocínio lógico, desmascarar invenções humanas elevadas pelo interesse de minorias à categoria de dogma.

Como visto, Marsílio atribuiu ao povo o poder de nomear seus representantes tanto civis como eclesiásticos; defendeu, a partir do conceito do povo como fonte de poder, a convocação de concílios gerais com autoridade superior à do bispo de Roma; rejeitou inúmeras reivindicações papais, especialmente as decorrentes do modelo de sacerdócio hierárquico; defendeu a sujeição da igreja ao Estado nas questões de ordem civil; e desmantelou o sonho de um império cristão universal ao ensinar o ideal da pluralidade de Estados.

Todas essas idéias, além de, na análise de Schaff e Cairns, antecipar temas protestantes, são mais do que o produto da razão em oposição ao dogma. Tanto que Marsílio de Pádua, reiteradas vezes fazia uso de inúmeros textos bíblicos que serviam como fundamento para os seus ensinos. Textos como João 18.36 (“o meu reino não é deste mundo”) e Mateus 22.21 (“Dai a César o que é de Casar e a Deus o que é de Deus”), além de Mateus 17. 27; Lucas 12.14; João 6.15; 19.11 e Romanos 13.1-7 mostram o valor que Marsílio dava à Escritura, mais do que à razão, como fonte de instrução nas questões da relação entre igreja e Estado.

Essa inclinação de Marsílio para a Escritura Sagrada, além de desmantelar a avaliação de Pierrard, também serve de exemplo para os ministros de Deus da atualidade. O retorno à Bíblia para dirimir questões de qualquer natureza é um modelo de procedimento que nunca se torna obsoleto e os mestres cristãos da atualidade, nesse aspecto em particular, têm em Marsílio um padrão a ser seguido.

Útil também como exemplo para os defensores da fé cristã atuais é a prática adotada por Pádua de buscar a raiz dos erros e problemas. De fato, quando Marsílio discute assuntos relativos à fonte de poder, atinge o modelo hierárquico, a instituição do papado, os privilégios do clero e todas as demais pretensões da igreja romana em suas próprias origens. Assim, Marsílio de Pádua ataca as bases de todo um sistema eclesiástico construído sobre meras criações da mente humana.

Ora, privado de seus alicerces todo edifício entra em colapso e cai. Essa lição deve ser aprendida e posta em prática pelos apologetas modernos. Há muito que a fé cristã precisa ser defendida contra o naturalismo e as filosofias orientais por meio de uma apologética pressuposicional, que não apenas tente derrubar os ramos e frutos das diversas árvores ideológicas, mas leve-as inteiras ao chão com golpes contra a própria raiz.

Finalmente, Marsílio de Pádua deve ser seguido em sua ousadia ao expressar pensamentos que corriam na contramão das tendências predominantes em sua época. Viu-se a comparação entre Marsílio e Aquino feita por Schaff. Conforme evidente ali, Marsílio de Pádua, movido por uma coragem que só encontramos em gigantes como Huss, Wycliff e os reformadores, não se manteve calado em face de um sistema tirânico e opressor dentro do qual nasceu e que o envolvia de todos os lados.

Essa ousadia – cujo preço é sempre alto, que desperta o ódio dos perversos e que, quando não lança os homens de Deus na sepultura, lança-os sempre na solidão – deveria ser a marca distintiva e permanente de todos os ministros do Rei Supremo, os quais jamais deveriam seguir o curso comum ou buscar a aprovação das multidões sem Deus, como têm feito atualmente inúmeros supostos ministros do Evangelho. Em lugar disso, os servos de Cristo de hoje deveriam apontar todas as mentiras que a perversidade associou à fé cristã e fazê-lo sem medo, certos de que em muitas ocasiões ficarão desamparados, como o próprio Marsílio ficou ao fim de seus dias. 21

REFERÊNCIAS
CAIRNS. Earle E. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 1984.
LATOURETTE, Kenneth Scott. A history of Christianity. Vol. 1: Beginnings to 1500. New York: HarperCollins, 1975.
PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz. Petrópolis: Vozes, 1995.
________. Defensor menor. Petrópolis: Vozes, 1991.
PIERRARD, Pierre. História da igreja. São Paulo: Paulinas, 1986.
SCHAFF, Philip. History of the Christian church. Vol. VI: From Boniface VIII, 1294, to the Protestant Reformation, 1517. Grand Rapids: Eerdmans, 1989.